sábado, outubro 13, 2007

As irmãs más


O primeiro filme que vi no cinema, quando criança, foi, inevitavelmente, um filme de Walt Disney, foi a Cinderela. Alguns viram o Bambi primeiro, mas eu vi a Cinderela. Claro que foi um momento mágico, o grande ecrã, os desenhos perfeitos, uma personagem doce que enfrentava um destino adverso com a ajuda da fada madrinha e de pequenos animais encantadores e que no final conquistava o príncipe encantado e um futuro radioso e merecido.

Mas nós não nos vemos habitualmente como Cinderelas. Na verdade, estamos mais perto de nos sentirmos como as irmãs más, com as nossas neuras, raivas, tolices, egoísmos e ciúmes. E claro que as detestamos, como as detestámos no desenho animado. Na altura pareciam tão distantes de nós, gostaríamos de nada ter a ver com elas. Mas descobrimos que temos, que não somos mesmo Cinderelas. O que fazer com elas? É que elas estão por todo o lado, encontrá-mo-las ali sentadas num canto num jantar animado, ao olharmo-nos nos vidros de uma montra, ao andarmos de autocarro pela cidade, ao encontrarmos um sem-abrigo, em momentos totalmente inesperados, e mesmo quando achamos que está tudo bem, mas afinal não está, elas estão presentes. E odiamo-las, desdenhamo-las, gostaríamos que desaparecessem do filme, do nosso filme.


Por mais técnicas que tenhamos experimentado, por mais práticas que tenhamos feito, por mais livros que tenhamos lido, por mais ensinamentos que tenhamos ouvido, por mais insights que tenhamos tido, por mais que nos tenham explicado o quanto é necessário aceitar e amar essas partes de nós que negligenciamos e detestamos, que afinal nada é negativo, e que as nossas emoções perturbadores afinal nada mais são do que o outro lado da nossa sabedoria intrínseca, elas, as irmãs más, feias e disformes, estão lá, podemos vê-las pelo canto do olho, um desenho animado grotesco das nossas falhas. E não só estão lá, como estão por toda a parte, vêmo-las reflectidas nos olhares que cruzamos, carentes, exigentes, desadequadas e ciumentas.

O desenho animado torna-se mais patético sempre que ela surge, a outra, loura e linda, a Cinderela. Ela chega sempre inesperadamente, sem se fazer anunciar, e conta histórias sobre o palácio real, o príncipe encantado, sobre tudo o que possui e por onde viajou. Ao seu lado somos inevitavelmente pálidas e sem graça. Ela tem tudo, acha que tudo lhe pertence, e, muito naturalmente, toma o nosso lugar e usa o que temos de mais precioso. Calça os nossos sapatos de cristal e nem repara que ficamos descalças.

Moral da história: as Cinderelas já não são o que eram... e as irmãs também não

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito do artigo.
Teresa

chumani disse...

obrigada por passares por aqui :)