A primeira coisa que se aprende quando começamos a praticar a via do Buda é que "a culpa nunca é do outro". O inimigo não está no exterior. Chogyam Trungpa classifica o nosso estado habitual como neurótico, e as nossas neuroses podem ter um padrão agressor ou vitimizador, mas são sempre neuroses, contracções, bloqueios, a expressão da nossa relação patológica com o mundo ou a realidade. Face a qualquer "agressão" a primeira pergunta é "de que maneira contribuí para esta situação?" E às vezes não vemos. Podemos passar a vida sem ver os nossos padrões. Podemos morrer sem os ver. Ontem no círculo de partilha o tema era a fala. Das dez acções prejudiciais, quatro envolvem a fala. Isto pode dar uma dimensão de até que ponto a prática a nível da fala é uma componente do caminho espiritual.
Mentir é a primeira deste grupo de acções nocivas verbais. Há muita espécie de discurso falso. Há as mentirinhas, os pequenos exageros, as pequenas inexactidões mais ou menos humorísticas, as falsidades ditas com o objectivo de auto-protecção ou protecção de outros, e finalmente as mentiras deliberadas, com uma intenção malévola.
O segundo tipo de discurso prejudicial é o uso da linguagem áspera ou agressiva. As palavras ásperas têm poder, magoam e por isso necessitamos de estar conscientes da energia e da nossa motivação por detrás delas. A intenção nesta "vigilância" não é a de suprimirmos ou bloquearmos os nossos sentimentos, mas de comunicar de uma forma que encoraje a cooperação em vez da divisão.
O terceiro tipo de discurso inábil é falar mal de um ausente e bisbilhotar. Como em tudo, é possível escolher o que dizer, as palavras não precisam simplesmente de sair das nossas bocas. Podemos também reflectir sobre por que é que os mexericos são tão visíveis. De uma certa forma, será que reafirmam e reforçam o sentido de eu? É interessante percebermos que o nosso discurso é igualmente e frequentemente uma espécie de mexerico sobre nós mesmos. É muito comum que o nosso discurso seja completamente auto-referencial e auto-centrado, bombardeamos os outros com conversas e histórias sobre "eu", o que eu fiz ou faço, o que eu penso, o que o outro me fez. Seria ainda mais interessante observarmos as nossas motivações nesse momento. Porquê esta necessidade de querer ser o centro das atenções? O poeta espanhol António Machado refere um antídoto para este hábito discursivo: "Se quiseres falar, primeiro faz uma pergunta, depois escuta."
A conversa frívola e inútil é a última da lista. O treino deste aspecto leva-nos a reflectir sobre quantas vezes dizemos coisas que não têm utilidade nenhuma. Numa conversa ou interacção social podemos tentar estar conscientes da intenção por detrás das palvras, prestar atenção ao processo, e sobretudo àquele pequeno momento antes das palavras saírem. Frequentemente podemos ver o quanto temos tendência para juntar coisas perfeitamente inúteis e frívolas à conversa. A fala é energia. Quando usamos sistematicamente palavras inúteis, abusamos dos outros e de nós mesmos.
Quando reflectimos sobre os sentimentos por detrás das palavras que usamos e da forma como comunicamos, podemos descobrir motivos que não imaginávamos. A tagarelice inútil, por exemplo, pode encobrir um sentimento de falta de valor próprio ou uma enorme necessidade de aprovação e de atenção.
A fala é um campo privilegiado para a atenção plena ao longo de todo o dia.
Do Acesso ao Insight (texto lido na sessão de ontem):
O critério para decidir aquilo que vale a pena ser dito:
[1] "No caso de palavras que o Tathagata sabe que não correspondem aos fatos, inverdades, não trazem nenhum benefício (ou não estão conectadas com o objetivo), antipáticas e desagradáveis para os outros, ele não as diz.
[2] "No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, não trazem nenhum benefício, antipáticas e desagradáveis para os outros, ele não as diz.
[3] "No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, benéficas, porém antipáticas e desagradáveis, ele possui o bom senso do momento correto de dizê-las.
[4] "No caso de palavras que o Tathagata sabe que não correspondem aos fatos, inverdades, não trazem nenhum benefício porém são simpáticas e agradáveis para os outros, ele não as diz.
[5] "No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, não trazem nenhum benefício, porém são simpáticas e agradáveis para os outros, ele não as diz.
[6] "No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, benéficas, e simpáticas e agradáveis para os outros, ele possui o bom senso do momento correto de dizê-las. Por que isso? Porque o Tathagata tem compaixão pelos seres vivos."
Tathagata este é o epíteto que o Buda empregava com mais freqüência para referir a si mesmo. Tatha significa assim ou tal; a segunda parte agata significa vir. No entanto a palavra gata significa ir. Há muito debate se o significado de tathagata é "assim ido (tatha-gata)" ou " assim vindo (tatha-agata)". O tathagata está totalmente presente ou ele se foi totalmente? Ele é completamente imanente ou transcendente? Talvez a melhor interpretação é que tathagata significa ambos, completamente imanente, compassivo, sintonizado em todas as coisas, completamente atento e ao mesmo tempo transcendente, dotado da sabedoria transcendente. (de Acesso ao Insight)
quinta-feira, setembro 28, 2006
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5 comentários:
Muito interessante. A dificuldade no critério é o "sabe". Como é que se sabe?
Suponho que o essencial é aumentar a sensibilidade e abertura, de modo a sentir como o outro pode ser beneficiado, não é? Desenvolvendo um interesse genuíno pela felicidade do outro as palavras correctas surgem naturalmente...
Por outro lado a acção pelas palavras correctas talvez ajudem ao desenvolvimento do tal interesse genuíno...
Mantém-se flexibilidade mental, vai-se mudando a perspectiva e tudo flui no mesmo sentido...
E se calhar muitas vezes o melhor é manter o "nobre silencio". Será que devia estar a comentar este post? :-)
:) Pois! LOL
Claro que frequentemente deveríamos manter "o nobre silêncio" mas mesmo isso pode ser um terreno escorregadio, depende da nossa atitude, sempre.
O importante é saber se as palavras que vamos dizer trazem ou não algum benefício. Se não trouxerem, não se dizem. Se trouxerem, mesmo que desagradáveis, há que dizê-las, procurando uma forma compassiva e o melhor momento para as transmitir.
Isto dito assim, parece fácil...
:)
E ouvir, muito ouvir.
(Auditar, não era isso? eh eh )
pois, auditemos, auditemos :)
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