quinta-feira, setembro 14, 2006

Abertura

Certos momentos de abertura e de insight parecem acontecer "por acaso". Ou, em terminologia cristã, pela "graça".

Hui Neng, o sexto patriarca do budismo Cha'n chinês, e fundador da escola da Iluminação Súbita, teve um momento de realização profunda ao ouvir, "por acaso", a recitação de alguns versos do Sutra do Diamante: "Quando a tua mente não se agarra a nada neste mundo, atinges a verdade de Buda". E Hakuin, que já referi, passou por muitas experiências de abertura, por exemplo, ao ler um poema, até que a iluminação mais completa surgiu ao ler o Sutra do Lótus.

Mais recentemente, Yamada Koun Roshi teve o seu despertar ao ler estes versos de Dogen:

Vi claramente
que a Mente não é nada mais
do que montanhas, e rios
e a grande, extensa terra
o sol e a lua e as estrelas

Não quer dizer que estes "despertares súbitos" só acontecem ao ler ou ouvir poemas! As histórias Zen são no entanto ricas no relato destes momentos de verdade. Mas também já ouvimos histórias de momentos de revelação pelo simples contacto com a natureza, um som, uma imagem.

Noutros casos, estes momentos de abertura parecem surgir na sequência de uma prática e de um esforço gradual e intenso. A freira católica e mestre Zen Elaine MacInnes, aluna de Yamada Koun Roshi, relata o seu despertar, integrado na prática intensa do koan MU, durante um retiro: " E então aconteceu. De repente, a concha dura do meu âmago abriu-se e o seu maravilhoso conteúdo espalhou-se por todos os poros do meu corpo. Foi para além dos limites corporais e a Elaine desapareceu. Não havia barreiras. Que bonito, limpo e puro... pertencente, aconchegante, em-casa. Que perfeito! O meu coração explodia de gratidão."

E depois, pensamos que isto só acontece aos outros. Que talvez, numa das nossas próximas ou menos próxima existências... e esquecemo-nos do ensinamento fundamental, que só temos o agora. Recebi este "relatório" ainda ontem:

"Nestes últimos dias, quando tive oportunidade, pratiquei a minha meditação e lancei no vazio a pergunta que tinha formalizado "Qual o meu objectivo de vida?" não tive resposta! e no dia seguinte, quando acordava, tinha uma dor de cabeça como se estivesse no dia a dia a concentrar-me ou a trabalhar em algo com minha responsabilidade. A única coisa que tinha realmente feito tinha sido traduzir o texto que me forneceste da "True Meditation".

Ontem à noite preparei o meu local de meditação em frente da aparelhagem com os auscultadores preparados e o CD n.º1 colocado em posição. Antes fiz as prosternações, fiz as respirações de limpeza, procedi à contagem das respirações versus momento de calma, escutando sem julgar. Em seguida, associei as três fases da respiração ao OM HA HUM e larguei estas âncoras, deixei-me navegar no vazio. A sensação estava óptima pois não tinha impedimentos significativos a importunar-me, e mesmo os que apareciam não me estavam a perturbar. Eu sentia-os, mas continuava a mergulhar no vazio e a navegar sem perder o fio à meada. Então deixei-me estar, mesmo sabendo que ainda não tinha ligado a aparelhagem para ouvir o CD. Lancei então outra vez a pergunta e fiquei à espera da resposta. E ouvi-me a fazer duas perguntas: "Afinal o que estou a aqui fazer?" e "Quem sou eu?"

Naquele momento não dei a mínima importância ao assunto, liguei a aparelhagem e fui ouvir o CD. Comecei então a ouvir o que o Adyashanti dizia e a perceber que afinal o que eu estava a fazer era muito próximo do que ele estava a falar acerca da True Meditation. Colocar-me numa posição de inocência e simplesmente ouvir o que a minha mente tinha para dizer e não lutar com ela pois seria uma luta perdida. Sim, sinto também que todos os mecanismos que efectuei antes de largar a âncora, e que existem como práticas milenares, se aproximam mais do conceito de concentração. Já me tinha questionado qual o esquema que deveria adoptar, pois já tinha lido também e experimentado várias técnicas e entendes, não sabia como calenderalizá-las e esquematizá-las. Fiquei contente por o ouvir dizer que a verdadeira meditação era depois, quando se largava a âncora e se tentava ouvir e investigar o que estava para além disso. E que era importante naquele momento não levar connosco preconceitos e entrar na true meditation de uma forma inocente e desprovida de expectativas, colocando uma simples questão "Quem sou eu?".

Eu tinha preconceitos em relação à questão "Quem sou eu?" por isso naquele momento não liguei nenhuma à resposta que tinha ouvido em forma de outras duas perguntas, até hoje de manhã, quando fiz a conecção com outra situação que me andava a ocorrer com a minha filhota. Ela nos últimos dias perguntava-me continuamente o seguinte: Mamã, quem é o papá? Ao que eu respondia: é o Francisco*! e de seguida outra pergunta: Mamã e tu quem és? Ao que eu respondia: sou a Mariana*! e eu em seguida perguntava-lhe a ela: e tu quem és? e ela respondia-me com simplicidade e prontidão: Não sei!

Bom, ao ligar as respostas/perguntas que tive ontem durante a meditação a esta situação em particular, dei-me conta que essa era a verdadeira questão de fundo e essa era a verdadeira resposta: "Quem sou eu?” Não sei. Pura e simplesmente.

Isto caiu-me em cima de uma maneira tão profunda e ao mesmo tempo tão simples e tão verdadeira, que ainda estou a tremer de emoção. Pois é muito interessante ouvir os outros contarem as suas experiências mas não há nada como senti-las e experienciá-las, é um verdadeiro choque! Realmente se eu não souber quem sou, como poderei saber qual o meu objectivo de vida e ter a pretensão de poder ajudar os outros!"


* Os nomes foram evidentemente alterados. Gráficos (mixed media) de Misty Mawn

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